DA INCONSTITUCIONALIDADE DAS MEDIDAS PROVISÓRIAS 928/2020 e 951/2020
PARA SUSPENSÃO DE PRESCRIÇÃO INTER PROCESSUAL
Em 2020, em razão da pandemia COVID-19, houve a publicação de duas
Medidas Provisórias pelo Governo Federal para adequação da Administração
Pública aos fatos que vieram à tona.
A Medida Provisória 928/2020, em sua redação constante do
art. 6-C, suspendeu os prazos prescricionais relacionados ao poder de polícia
da Lei n.o 9.873/99
de 22/03/2020 a 20/07/2020, ou seja, por 120 dias. Ato
contínuo, em 15 de abril de 2020 foi editada a Medida Provisória
928/2020, estendendo a vigência da referida suspensão até 12/08/2020,
totalizando, portanto, 142 dias de suspensão do prazo
prescricional para apurar sanções no âmbito da Administração Pública Federal.
Vejamos a redação:
“Art. 6º-C Não correrão os prazos processuais em desfavor dos
acusados e entes privados processados em processos administrativos enquanto
perdurar o estado de calamidade de que trata o Decreto Legislativo nº 6,
de 2020.
Parágrafo único. Fica suspenso o transcurso dos prazos prescricionais
para aplicação de sanções administrativas previstas na Lei nº 8.112, de
1990, na Lei nº 9.873, de 1999, na Lei nº 12.846, de 2013, e nas
demais normas aplicáveis a empregados públicos.” (NR)
Ocorre que tais Medidas Provisórias não foram convertidas em Lei pelo
Congresso Nacional, bem como não houve a edição de Decreto Legislativo para
regular as relações jurídicas firmadas naquele momento, sendo Medidas
Provisórias de eficácia exaurida.
Em que pese a discussão doutrinária e jurisprudencial acerca do tema,
identificada uma situação que possa ensejar a aplicação de sanções
administrativas, a rigor, o poder público dispõe do prazo de cinco anos
para instaurar e concluir o processo administrativo sancionador.
Ainda que se diga que tal medida também visa preservar as garantias dos
particulares, tais como o contraditório e a ampla defesa, que eventualmente
poderiam ser comprometidas pela indisponibilidade de atendimento presencial nos
órgãos e entidades, isso não é verdade, uma vez que, mesmo nos processos
físicos, as comunicações e os atos processuais (intimação, defesa, decisão,
recurso, etc.) poderiam ser praticados por meio eletrônico, através de e-mail,
por exemplo, com a conseguinte autuação e juntada ao caderno processual – e foi
o que se viu em diversos órgãos e autarquias.
Até porque, a despeito do isolamento social recomendado pelas
autoridades públicas nas três esferas de governo, o serviço público não
parou completamente, tendo sido mantidos os essenciais, com os demais sendo
prestados sem atendimento ao público e/ou mediante escala.
Não é demais mencionar o sucesso que foi o teletrabalho para o serviço
público, tendo sido mais do que comprovada a economicidade e vantagem de tal
modalidade.
Logo, a exemplo, se há servidores impulsionando os feitos da
administração, é possível que os demais assuntos, tal como o poder de polícia e
outros a eles relacionados sejam igualmente conduzidos, independentemente do
atendimento pessoal.
Porém, tal norma não se coaduna com o sistema Constitucional, notadamente
alguns princípios que se verá adiante.
Primeiro, porque possui pecha de inconstitucionalidade, tanto pelo
aspecto formal, uma vez que não haveria urgência e relevância para
tratar do tema por meio de medida provisória, já que o meio eletrônico se
manteve em plano funcionamento, quanto sob o ponto de vista material,
pois há aparente conflito com os preceitos constitucionais relacionados
ao assunto.
Segundo, porque essa inserção causou um indevido desequilíbrio
que supera o poder extroverso da administração, haja vista que o prazo
quinquenal previsto no artigo 1º do Decreto Federal nº 20.910/32 para que os
particulares perquiram direitos em face do poder público não foi alterado ou
suspenso em razão da pandemia, permanecendo contado a partir do ato ou fato do
qual se originarem. Ou seja, somente o prazo em favor da administração
foi elastecido, violando frontalmente a paridade de armas entre a Administração
e os Administrados.
Essas Medidas Provisórias evidenciam que diante da proporção alcançada
pela situação atual, passou-se a ter uma grande preocupação não apenas com o
combate da pandemia em si, mas também com a possibilidade de responsabilização
dos administrados pela prática dos atos infracionais. No entanto, isso
não pode implicar em prejuízos aos particulares, tal qual a postergação do
prazo prescricional para a conclusão dos processos punitivos.
Neste ponto, ao que importa, há malferimento à isonomia no que toca ao
poder sancionador, uma vez que mesmo suspenso o prazo prescricional, os
processos mantiveram seu curso, com despachos, instruções e todo aparato
processual dos órgãos ambientais.
Não é demais mencionar, também, que a manutenção dos efeitos das
Medidas Provisórias 928 e 951 de 2020 viola frontalmente o texto da
Constituição da República. Isso porque, o artigo 62, § 11°, da
Constituição Federal, dispõe que o que se preserva com o fim da vigência da
Medida Provisória são as relações jurídicas durante o período de
vigência desta. Ou seja, as relações firmadas naquele momento atípico.
Neste sentido, não se pode ampliar a interpretação de modo a crer que a
referida norma intertemporal permitirá a ultratividade da suspensão da
prescrição, porquanto estaria, neste caso, regendo lapso temporal, e não
relações jurídicas consolidadas naquele momento.
Como bem asseverado por Gilmar Mendes e Paulo Gonet “o que se
haverá de resguardar são as relações ocorridas enquanto a medida provisória
esteve em vigor” (MENDES, 2020, p. 1023).
Diferente fosse se, no referido período de suspensão, a Administração
constatasse uma infração ambiental e, em razões da pandemia, não pudesse
realizar a vistoria in locus para aplicação do termo de
embargo o da autuação cabível. Neste caso, estaria se consolidando, de fato,
uma relação jurídica, nos termos do que dispõe o artigo 62, § 11°, CF, de
tal modo que aplicável a possibilidade de se postergar o momento da autuação,
com a referida suspensão do prazo prescricional, já que impossibilitada de agir
em razão de fator externo, impedindo-lhe a consolidação de uma relação
jurídica.
Certo é que, se a administração se mantivesse inerte com relação aos
processos administrativos, nada teria a reclamar quanto ao texto das Medidas
Provisórias aqui impugnadas. Porém, não foi o que se deu. As autuações
continuaram, o processo administrativo continuou, e com isso o Estado, em total
descompasso com as regras que garantem a isonomia, teve um lapso de 142 dias de
suspensão de prescrição da pretensão punitiva, gerando um total desequilíbrio
nas relações entre a Administração e os particulares.
O fato é que, “a regra da prescrição consiste numa garantia geral,
decorrente do direito fundamental à segurança jurídica, a impedir que a
Administração Pública exerça sua pretensão punitiva de forma ilimitada
temporalmente”, assevera SCHNEIDER. Em continuidade:
Pode-se atestar, à luz da jurisprudência do STF, a existência de um
regime jurídico constitucional voltado à proteção de todos que possam ser
submetidos a uma sanção administrativa. Um dos reflexos desse regime consiste
na garantia fundamental que impede uma sujeição temporalmente ilimitada
ao poder punitivo estatal. Em outras palavras, há um dever público
de o Estado limitar o seu próprio poder punitivo no tempo, pela adoção de
prazos prescricionais ou decadenciais razoáveis.
O texto constitucional excepciona por completo tal garantia apenas em
hipóteses expressas, nas quais outros valores justificaram a sua supressão:
crimes de racismo (art. 5º, inc. XLII, CR), crimes relacionados à ação de
grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado
Democrático (art. 5º, inc. XLIV, CR), e no caso de ressarcimento ao erário por
dano decorrente da prática de ato doloso de improbidade administrativa (art.
37, § 5º, CR).
A doutrina segue a mesma trilha. Binenbojm (2017, p. 99-103) assevera
que o regime jurídico aplicável ao poder punitivo estatal encontra fundamento e
limite, de forma aproximada, na sistemática adotada pela Constituição para o
Direito Penal. Com razão, aduz que o poder punitivo é um dos campos do Direito
Administrativo mais influenciados pela Constituição e defende a repercussão
nele de diversas garantias associadas ao Estado Democrático de Direito, insculpidas
no art. 5º da Constituição, tais como os princípios da segurança jurídica, do
devido processo legal, da razoabilidade e da proporcionalidade. (Ricardo
Schneider, 6 JOURNAL OF INSTITUTIONAL STUDIES 2 (2020) Revista Estudos
Institucionais, v. 6, n. 2, p. 666-684, maio/ago. 2020)
Portanto, o que se quer dizer, em apertada síntese, é que interpretar as
Medidas Provisórias 928 e 951 como causa total de suspensão da prescrição do
poder sancionador, inclusive no bojo do processo administrativo, viola
a isonomia, a segurança jurídica e a proteção à confiança legítima, uma vez que
os processos mantiveram seu curso normal, pela via eletrônica, sendo algo
totalmente prejudicial aos particulares, notadamente porquanto não houve
suspensão da prescrição, vide gratia, nos casos de ações contra à
Administração, regidos pelo Decreto Federal n.o 20.910/32.
Assim, para os processos administrativos já instaurados quando da
vigência das referidas Medidas Provisórias, não se pode cogitar de suspensão de
prazo prescricional, já que o curso destes se deram em plena normalidade. Lado
outro, possível seria falar em suspensão do poder sancionador quando da necessidade
de autuar, em caráter primário, a fim de dar início a um processo
administrativo sancionador, o particular que viola as leis e regras ambientais.
Diante do exposto, deve ser reconhecida inconstitucionalidade do artigo
6-C da MP 928 ou, ao menos, a interpretação conforme a constituição para garantir
a aplicabilidade das Medidas Provisórias 928 e 951 de 2020 tão somente quanto à
possibilidade de suspensão do prazo prescricional para a autuação, e não em
relação à suspensão do prazo prescricional do poder sancionador quando já
houver o processo administrativo instaurado, já que este manteve seu trâmite
normal.